O trabalho mais difícil de Hércules
Os brucutus e fodalhões mais populares da ficção descendem de um ancestral em comum, Hércules, figura da mitologia grega que apesar do alegado parentesco com Zeus, representa a mais genuína e antiga aspiração humana a virtudes transcendentais.
"Héracles", como era conhecido na Grécia antiga (antes de ser rebatizado pelos romanos com o nome que conhecemos até hoje), era um semideus bastardo, fruto de estripulias eróticas entre o mais poderoso dos deuses e uma reles mortal. Seu triunfo e aceitação junto à sociedade de divindades do Olimpo só veio após ter realizado os famosos 12 trabalhos que tornaram o mundo dos homens um lugar mais seguro para se viver.
Depois de atravessar os séculos, incluindo aí uma série de TV e um desenho animado da Disney, sem falar nas derivações livres como o Superman, Conan, Chuck Norris, etc., o mito da antiguidade clássica acaba de ganhar uma nova versão, totalmente repaginada à altura deste novo século: o filme "Hércules", que – não por acaso – estreia nesta semana nos cinemas.
Não resistindo à sanha de destrinchar filosofias de boteco a partir de uma superprodução de Hollywood, arrisco dizer que o macho alfa do novo milênio encarnado pelo astro do WWE ilustra com perfeição um novo paradigma de masculinidade estabelecido pelos tempos modernos – mais precisamente desde o advento do "Pescador Parrudo" em Kubanacan, segundo alguns historiadores praticamente confiáveis.
Pra começar, corta aquele papinho místico e charlatonices sobre poderes sobrenaturais. É possível ser verdadeiramente foda com boa dose de determinação, atitude, coragem, marketing, musculação, suplemento alimentar – e uma little help from friends, claro.
No lugar das firulas mitológicas, o personagem é um "reles" mortal, líder de uma confraria de mercenários, com quem compartilha responsabilidades operacionais e os louros da vitória.
Num exercício de livre interpretação, poderíamos ir ainda mais longe na compreensão do protagonista mitológico nesta releitura da virilidade contemporânea.
É curiosa a transformação por que passou o ícone de macheza ao longo dos últimos anos. Lampião, Valadão e todos os outros nomes no aumentativo que o machão pudesse ter, em seu tempo, não choravam. Aliás, nem sorriam muito que é para não dar motivo a falatórios. Faziam a barba a seco e tratavam suas mulheres com curtas rédeas. Peixeira e voz grossa; autoridade inquestionável.
O macho de hoje ainda não nega um rabo de saia, nem dois, nem quantos forem, pois o singular não é o seu forte, e ainda dá três (o Romário garante que dá treze) sem tirar, apesar de não considerar uma broxada assim o fim-do-mundo – é apenas “uma coisa supernormal que nunca me aconteceu”. Mas apesar da aparente promiscuidade, respeita de verdade as mulheres e é capaz de entregar seu coração para uma única e especial donzela. E como uma, sofre por amor – talvez até ouvindo um Caetano.
O macho de 2014 admite seus erros, seus medos, sua vaidade, até. Pensa nas crianças abandonadas, nas minorias oprimidas, na paz mundial e na preservação das espécies. Pratica esportes, vota consciente, sabe cozinhar, cita Nietzsche (normalmente sem ter lido), manifesta algum tipo de fé religiosa sincrética, manja de feng shui, faz tai chi chuan, krav magá e ainda assim às vezes não troca de cueca.
Além disso, o novo machão respeita a orientação sexual alheia – apesar de rir às gargalhadas com piadas e chacotas tecnicamente homofóbicas junto de seus amigos "veados". Aliás, nada no mundo vale mais que uma amizade. Código de honra, escrúpulos, ética, honestidade, são coisas mais importantes que uma boa cusparada no chão.
Ou, resumindo para sublimar a mensagem do filme: honrar as próprias bolas, em um sentido mais contemporâneo.
No fim das contas, percebemos que o trabalho mais difícil que Hércules poderia enfrentar é ser um de nós, e matar um Leão de Nemeia por dia na vida real.